Em um misticismo exclusivo, os anos terminados em três marcam transformações profundas em mim. Foi em 2003 que precisei me dividir entre o trabalho e o hospital até
dona Vera perder uma longa batalha contra o câncer, perto do Natal ― e que também tive de aprender a fazer arroz, lavar privada, cuidar dos irmãos mais novos, multiplicar dinheiro no supermercado.
Em 2013, deixei o casarão de uma vida inteira para caber com
dez gatos, o Leo e, esporadicamente, as enteadas em um
apertamento de 60 m2. Meu apertamento ― depois de uma
reforma "faça você mesmo", apelidada de terapia. Uns meses antes, por causa das crises recorrentes de alergia e asma, já havia decidido
parar com os resgates e redirecionar os esforços do
Gatoca para a educação.
Se minha mãe estivesse viva, provavelmente confirmaria que em 1983 juntou coragem para se separar do alcoolismo do meu pai e nos mudamos para o prédio em que minha avó morreu antes de cumprir a promessa de sorvete toda a tarde, quando o shopping em frente ficasse pronto ― para voltar atrás pouco tempo depois. A mãe, não a avó.
E deve ter sido em 1993 que sofri um
bullying persistente por nunca ter beijado na boca ― resolvi inventar um caso na viagem com as "amigas" à Caraguatatuba, que acabou desmascarado e só piorou tudo. Para dar uma ideia do impacto, o beijo de verdade tardou mais cinco anos ― e, por favor, não façam as contas.
Finalmente chegamos a 2023, assunto desta retrospectiva, com três gatas mortas em 15 semanas, a expectativa de um sabático ao final destas quase duas décadas felinas e um
intruso estragando tudo.
Guda partiu em março, com 17 anos,
Pipoca em julho e
Pufosa dois dias depois, ambas com 16.
Além da
exaustão, sobrou um gosto amargo porque Pipoquinha chegou a reverter o
primeiro derrame pleural ― que demandou uma
releitura da escolha de Sofia de 11 anos atrás. E, pouco antes delas, já havíamos pedido o
Mercv (com quem vira e mexe
sonho) e a
Clara, igualmente idosos.
A dinâmica da casa, acostumada a nove bichos preenchendo vazios e silêncios,
mudou completamente ― ainda não acostumei a me referir à
gangue no feminino. Sem a mãe e metade das irmãs, Jujuba virou uma
gata carente e Keka deu para me acordar aos berros cada vez mais cedo ― 4h44 o recorde! Quem não mudou foi o
Leo (amo essa foto!), parceiro de soro, de obra, de cova.
Comentei aqui no blog que envelhecer com os bigodes tem me feito enxergar o tempo de outra forma ― as adaptações demoram mais, o corpo não funciona do mesmo jeito, a gente precisa fazer um esforço ativo para não deixar a curiosidade morrer junto com o resto.
Eis que Intrú veio
chacoalhar essa energia, com seu olho verde-vida, o pelo brilhante, o nariz rosinha ― lembra Mercv jovem, principalmente quando dorme de boca aberta. No dia 27 de outubro,
começava o projeto castração, bem-sucedido, mas com
pós-operatório turbulento e
duas bombas: a idade e a FeLV. Mesmo assim, persisto na
campanha de adoção, porque ele merece morar do outro lado da porta de vidro da lavanderia.
No ativismo, aliás, o ano prometia com a criação do
Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais pelo governo federal. E ficou só nisso mesmo. Eu diminuí o ritmo de publicação dos posts e a frequência de envio do boletim para
conseguir dar conta de tudo ― rolou Gramado da Fama em
fevereiro,
maio e
julho, mas aquém da ambição do nosso
financiamento coletivo.
O blog
perdeu o puxadinho no servidor de mais de uma década, passando justo o 1º de abril fora do ar. E ainda assistimos portão e telhado araçoiabanos voarem com o temporal de novembro ― que também nos deixou sem luz e água por três dias. Nos intervalos, porém, a gente comemorou.
Os
dois anos de casa nova, os
16 do Gatoca (em
dose dupla!), os aniversários da
Chocolate e das
Gudinhas (e o
primeiro aniversário sem Guda, bem como o
segundo sem Mercv, em homenagem), o
Natal customizado ― com brinquedinhos para as peludas, lasanha de marmita em companhia do Intrú e Amigo Secreto de Talentos no
Cluboca, o grupo de apoiadores mais maravilhoso do universo!
A geriatria dominou o conteúdo de serviço:
gastrite por doença renal,
cérebro cansado,
fralda,
artrose,
ataxia,
escova de bebê,
patê lisinho para seringa. E desabafei sobre o
difícil equilíbrio ao cuidar de bichanos. A série inspirada em
O Encantador de Gatos, livro do Jackson Galaxy, ganhou dez capítulos inéditos: sobre os
bigodes felinos, a
visão e a
audição, como eles
caçam e o que
comem, hábitos de
limpeza e
sono,
arquétipos,
lugares de confiança e
esconderijos-casulos.
Também teve teste de
latinha em molho e o controverso
sabor peixe, e textos sobre
alimentação úmida, o
gosto da água e
ração de insetos (+ novidades gringas). O enriquecimento ambiental foi turbinado com
sofá e prateleiras repaginados, a primeira
cama nuvem,
arranhadores caseiros (com
passo a passo) e
parquinho vertical ― que rendeu uma
miniobra!
O blog ainda alertou para os
perigos do calor,
garras que entram nas almofadinhas, a
incompatibilidade de banho e antipulgas,
inchaço que vira abscesso, os
malefícios da imobilização pelo cangote. Ensinou a
identificar dor,
ronco e
marcação fantasma,
se declarar com os olhos,
pesar seu amigo com precisão.
E, mesmo quebrada por dentro, não podiam faltar os posts de entretenimento: nossa experiência
tragicômica com inteligência artificial, a
briga com o ChatGPT, o
desafio dos seriados, o
ataque de um serial killer, a
visita de pterodátilos, as
releituras de Dalí,
gatos fazendo gatices, a
inviabilidade do nosso reality show, minha
soneca com o inimigo, a
Pimenta do clima e as
vergonhas de gateiro.
Que 2024 bata mais leve ― porque a idade dos integrantes fixos e o gênio do temporário dão o
spoiler de que fácil não será. rs
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