Lembro de encher o cabelo da Mari de marias-chiquinhas e passear orgulhosa de mãos dadas com ela, como se fosse minha filha ― não tem nem três anos de diferença entre nós. De 1995 a 2003, passei pomada em dezenas de hematomas de quimioterapia e exames da minha mãe. E só aceitei revezar as madrugadas de hospital com meu pai, na última internação, quando acordei de um desmaio com ela me segurando no banheiro junto com o cabide de dreno, soro e medicações.
Meu pai, a quem depois ofereci acompanhar nos alcoólicos anônimos, mentindo que também exagerava na bebida, só para encorajá-lo. Por causa deles, a morte e o vício, assumi a casa e os dois irmãos aos 23 anos, João com 16. Aprendi que amaciante não se enxágua, acumulei boletos, participei de reuniões de escola, dei conselhos sobre sexo.
Sou uma pessoa que cuida.
E ri quando Maru te identificou como minha gata de cura, dado o exagero dos bigodes, que quase se tocavam nas pontas. Fazia todo o sentido compartilharmos a alergia respiratória ― ainda que você também interpretasse o papel de alérgeno, rs. Seus superpoderes sempre reconheciam um coração precisando de aquecimento.
Foi um choque te ver tombar em dois meses e meio tudo que não havia envelhecido nos 17 anos anteriores, justo porque resolveu caçar uma aranha (ou qualquer bicho de fora da sua caixinha de brinquedos), responsável pela reação alérgica que colapsou de vez os rins ― em algum momento, precisarei lidar com essa caixinha, já que são raros os gatos autobrincantes. Mas não hoje. Por isso, inclusive, atrasei este post em dois dias.
Sem você aqui para lamber meus cabelos, tomei como remédio a visita mediada pelo pessoal do Museu de Imagens do Inconsciente à exposição da Nise da Silveira, lembrança dos tempos de curso do Jung na PUC. Leo, que não tem minha facilidade com as palavras, fez hambúrguer para o almoço, pizza para o jantar e nem me julgou por comer lasanha no café da manhã. Li comédia romântica na cama até mais tarde, maratonamos um seriado da terceira idade ― mas eram ladras!
Agora, preciso arrancar o band-aid.
Você protagonizou a clássica jornada do herói, na versão Pixar. Antes mesmo de enxergar, recém-nascida, já estava liderando a aventura de desbravamento pela lavanderia do casarão herdado, que fez despencar degrau abaixo suas quatro irmãs. Não tinha nome melhor do que Pimenta! ― quer dizer, Mariana te apelidou de Devedora Temedora, o que também fazia jus. Era a única integrante da família Guda que eu sempre soube que não doaria.
E o miado fininho enganava. Lembra quando deu um baile na faxineira e fugiu pela amoreira do jardim de inverno, que deveria ficar fechado? Ou do contorcionismo para caber nas gavetas? E quando Intrú invadiu o gatil para bater na Keka e você o botou para correr? Depois, Leo ainda esqueceu uma porta aberta e precisei separar você e o frajola duas vezes maior, engalfinhados embaixo do contêiner, a gritos.
Claro que a gata de pelo longo tinha de ser a mais bagunceira. Cheguei a pegar uma lesma ressecada na sua barriga! E perdi a conta de todas as vezes em que você caiu da prateleira rolando empolgada ― o que também fazia no banheiro. Prateleira da parede customizada com catarro, aliás, que a gente não vencia de limpar. Até dormindo você parecia combater o crime ― sempre imaginava um narrador bradando: "Para o alto e avante!".
E bastava esticar o tapetinho de ioga no chão para sua cara se materializar na minha, dando sequência a uma sucessão de espirros.
Quando Leo descia para o estúdio, você ia correndo na frente ganhar carinho de bunda no tronquinho feito justamente para vocês ― ele não chorou como eu, mas sei que ficou abalado porque passou a matar todas as aranhas que encontrava pelo caminho (em casa de vegano, até barata a gente espanta).
Acho que você foi quem mais aproveitou o gatil de Araçoiaba, curtindo o catnip úmido nos dias secos, adubando o resedá organicamente, se escondendo na cinerária, que partiu junto contigo ― no apertamento de São Bernardo, onde a alergia respiratória começou, tinha de se contentar com um vaso de suculentas e, em Araçoiaba, o gramadinho era quase cenográfico.
Para compensar as inalações, passei a te levar para passear pelo terreno, proibido aos gatos que conseguiriam escalar 2 metros de muro. Mesmo desequilibrando, você adorava xeretar a bagunça da oficina. Depois, retomava o fôlego nos bambuzinhos ao lado e rumava para as bananeiras, onde se metia embaixo de uma folha de costela-de-adão, sob a taioba ― três camadas de disfarce!
Na tarde de quinta-feira, se pôs a miar na porta de vidro da sala, pedindo para sair, coisa que não acontecia há tempos. Andou com dificuldade, fazendo mais paradas do que o normal, como se se despedisse. Na sexta, te levei no colo para baixo da taioba, aquela sob a bananeira, para ser nossa despedida, foto que abre este post ― não consegui entrar embaixo da costela-de-adão, desculpa.
Você não seria uma velhinha de pijama, né?
Te ajeitei no quarto, para monitorar de perto, mas percebi a inquietação. Imaginei que preferia passar a madrugada no montinho felino, ainda que desfalcado, e te devolvi entre Jujuba e Keka. Acordei às 3h, com Jujuba vomitando no corredor, e você já tinha ido ― só esperou terminar o aniversário da dona Vera. Sozinha, do mesmo jeito que nasceu, porque eu não sabia que um parto animal podia dar errado.
Me doeu te recolher ainda molinha do chão gelado. E, pela primeira das oito mortes, chorei de culpa ― 36 minutos, até pegar no sono com seu corpo ao pé da cama. Sonhei, então, que você levantava e vinha se aconchegar no meu colo. Eu dizia que isso não podia acontecer porque estava morta, mas te enchia de carinho. Só um instantinho, que fez muita diferença.
Obrigada por cuidar de mim, mesmo quando essa era minha função. ❤
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Preciso agradecer ainda o Dr. Nivaldo, que em 2008 aceitou hospedar a pastora belga grávida recém-resgatada por uma desconhecida, com toda a cara de golpe, acabou virando amigo e mesmo aposentado em Brotas me aconselhou sobre as possibilidades de tratamento para a Pips no final. O Adriano, terapeuta que também tenho o privilégio de chamar de amigo (foda-se Freud), por me ouvir falar do mesmo assunto há 52 sessões. E a Liliane, apoiadora querida que ainda me paga para escrever por fora, que nunca cobrou aqueles textos não entregues.