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23.3.23

Saudade

Você foi o golpe da barriga mais bem-sucedido do universo felino. Quando dona Jane, a vizinha que passou anos odiando nossa infância (e seus barulhos), tocou a campainha de casa, em maio de 2007, eu não sabia disso. Achei, na verdade, que viria reclamação. Eis que você apareceu ostentando a pança que viraria apelido e daria forma ao Gatoca — porque contar a história de quatro gatos não tem o mesmo apelo de uma dezena, né?

Preciso confessar, aliás, que pretendia doar todo mundo — quem consegue cuidar de dez bichos? Depois, só a ninhada. E aqui entra a engenhosidade do golpe: você fez as meninas mamarem até os 2 anos! Aos 6 meses, vamos combinar, a situação já era ridícula. Pimenta nem coube!


E toda noite, pontualmente às 21h, você roubava um ímã do meu mural de fotos, fazia um miado engraçado e as cinco vinham jogar hockey. Contei essa história na Folha de S.Paulo, lembra? Uma sexta-feira em que o blog superou os acessos acumulados desde a criação, seis meses antes.


Só um monstro separaria essa família — que seu coração, tão grande quanto os bigodes, compartilhou gentilmente conosco.


Como minha mãe morreu muito cedo e a gente não se toca da importância do que está vivendo enquanto se está vivendo, foi você quem se tornou meu exemplo de maternidade. Mesmo quando as Gudinhas já não queriam mais ficar tão grudinhas, você apoiou — do seu jeito, no tempo delas.

E me fazia pensar quem zelaria por ti no final — Simba teve Clara, Clara teve Mercv, Mercv teve você. A resposta refletia no espelho. Mas ainda não estou pronta para terminar esta despedida.

Quero falar antes de como você recebia todas as visitas com esfregadas, personalidade oposta à das filhotas ariscas, e tentou sem sucesso ser amiga da Chocolate — que inventou o conceito de arqui-inimigo platônico. Da sua obsessão por pão francês. Dos carinhos de pé que amava ganhar feito pano de chão — só que impecavelmente branco, macio e cheiroso (até o fim, exceto pelo bafo, sorry).

Das bolinhas petelecadas, quando ninguém mais topava brincar junto (1 e 2) — sempre me chama a atenção constatar o lado não-mãe das mães. E da generosidade de deixar o luto de maio do ano passado exclusivo para o Mercv.

Nesses dez meses, a doença renal avançou, a cistite rendeu dois episódios, o nariz nunca mais desencatarrou. E ao quadro delicado ainda se juntaram sintomas neurológicos — tipo fingir coma enquanto dorme. Fica difícil identificar o que te fez parar de comer de vez.

Mas cada rodada de patê na seringa era compensada, para nós duas, com passeios úmidos pelo jardim, roladinhas sem pressa no gramado, cafuné com ronrom. Até comecei a ler O Homem Que Morreu Duas Vezes, mas você se enfiava na lama embaixo do contêiner e só deu para embalar mesmo quando terminamos na cama.


Não era para ser assim. No meu roteiro, a gente teria espreguiçadeiras. E você, baiana de tudo, seguiria apagando como uma velinha — já contava com essa possibilidade desde janeiro. Quem sabe morreria sonhando, por que não? Na última semana, porém, rolou um plot twist e os três últimos dias dispensam bilheteria.

Simba partiu quando não conseguiu mais chegar ao banheiro para fazer xixi, Clara quando não conseguiu mais comer o patê de colher, Mercv quando não conseguiu mais curtir o meu colo. Você já tinha perdido tudo, parecia que entregaria os pontos e, do nada, tirava forças para mais um miado, uma caminhada bamba, um solzinho no gatil.


Senti que não queria ir. Era por causa das meninas, Guda? Na primeira noite em que te levei prostrada para o quarto (sim, diferente dos outros gatos, você dormiu mais de uma noite no quarto, fato inédito por causa da alergia... a gatos), você se materializou em frente à porta, deixando claro que não ficaria.

Na terça-feira, seu balde de faxina favorito para beber água velha amanheceu quebrado e ninguém sabe dizer como. Depois, a assadeira refratária de vidro explodiu no forno com o nosso almoço — Nadir Figueiredo destacando em vinho a tecnologia contrária ao feito. E eu completei quatro quilos perdidos — nada, em comparação aos seus 1,65 kg finais.

Ontem, perguntei para o Leo se a Clara ainda estava nos almofadões. Provavelmente exausta pelas madrugadas em claro, mas quero acreditar que era ela te acompanhando na partida. E você foi. Às 4h55 de hoje, depois de cair (será?) da escultura moderna de travesseirinhos com que tentei melhorar sua respiração, de rosto colado ao meu.

A lembrança mais agridoce que se pode ter de um despertar.

Fica tranquila que cuidarei das tranqueiras — aprendi com a melhor. Em dois meses, elas farão 16 anos! E você fará uma falta danada.



20 comentários:

Sergio Amorim disse...

Nossa, Bia...
Que dor!
Mas os bons momentos foram muitos, e multiplicados!
Fiquem bem...

Anônimo disse...

Ela foi muito amada e querida, por você, Bia e por todo o fã clube Golpistas. Descanse em paz, dona Guda. =((((


Simone Castro

Anônimo disse...

Pela segunda vez, hoje, meu coração foi partido. E assim como da primeira, não consegui verter uma lágrima. Só uma dor de cabeça persistente que não cedeu com analgésicos. Seguro sua mão em pensamento. Regina Haagen

Anônimo disse...

Te abraço com carinho.

Anônimo disse...

A Guda foi muito amada,

Anônimo disse...

Se eu estou aos prantos, imagino vc 😭💔 Cada partida deixa um buraco a mais no coração... a gente, que tem vários filhos, que lute! 😿 Um abraço apertado, Bia!

Elis disse...

Sempre temos sorte de tê-los em nossa vidas... Mas tiveram a sorte em tê-la tbm... Sinto muito por sua perda, meus sinceros sentimentos, mas tenho certeza que um dia reencontraremos essas almas maravilhosas que só nos deram amor, carinho e nos fizeram tão bem... Se eles estão em seu coração, nunca terão partido... Hoje ela vive em você!😢

Anônimo disse...

Sinto muito pela sua perda. 🖤

Bárbara disse...

“Saudade é solidão acompanhada, é quando o amor ainda não foi embora, mas o ser amado já” - só consigo pensar nesse poema do Neruda ao saber que a Gudinha se foi. Um abraço carinhoso, Bia.

Isadora disse...

Chorei tanto com esse post :( Caí aqui no blog do nada, to lendo tudo e amando, é um cantinho adorável!

Tati disse...

Ah, Guda. Quanta alegria e histórias você trouxe. E que sorte ter encontrado o caminho para a rua Cáspio e chegar na Bia. Bia, um abraço apertado. Obrigada por ter abrigado, amado, cuidado de Guda e Gudinhas por estes 16 anos.

Daniela disse...

Guda teve uma sorte grande, uma vida linda com você. Triste, mas faz parte. Abraços, fica bem.

Anônimo disse...

Sempre assim, dor que não tem fim

Anônimo disse...

Guda, Guda, um KinderOvo de muita sorte. Esteja em paz no céu dos gatinhos 🙏 Para você Bia um abraço apertado da Cris

Anônimo disse...

Demorei pra ler porque não estava preparada. Por mais esperado que seja, o final é sempre muito triste... força pra vcs!

Anônimo disse...

Bia!!!
Sinto muito! Nossos gatinhos partem e levam um pedaço do nosso coração!
Ass: Glaucia

Beatriz Levischi disse...

❤️

Bem-vinda ao Gatoca, Isadora! Você pegou uma fase triste, mas não é sempre assim. :)

Lidiane Machado disse...

Ai meu coração, cada despedida e suas palavras me deixam com coração em pedaços como se eles fossem meus 🥹

Anônimo disse...

Chorando... tenho 5 meninas. Já fico pensando quando começarem a partir 😭😭😭

Beatriz Levischi disse...

Vale cada lágrima. :)