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18.4.24

Saudade

Esta é uma história sobre escolhas. Começou no dia 14 de fevereiro de 2007, quando João te encontrou pequena, rabinho quebrado, o clássico nariz de chocolate que viraria nome, lembra? Eu escolhi te deixar para adoção no pet shop, porque acreditava que não daria conta de cuidar de quatro gatos. Mas a gaiola estava lotada e não voltei na semana seguinte.

Você poderia ter tido uma família mais exclusiva ― não só dei conta de cuidar de quatro gatos como de cinco, de sete, de dez (e algumas dezenas de temporários). Geniosa, ficava na ponta mais afastada do montinho felino ou reinando exclusiva na estante do escritório, em sua almofada de joaninha ― que nos acompanhou por três mudanças, ganhou uma cestinha, um remendo à la Tim Burton e só aposentou com a cama nuvem, depois de uma tentativa fracassada de roupinha.


Em Sorocaba, escolheu a lavanderia, menos disputada, para chamar de sua. Eu achava que era por causa da estante, aquela que ficava no escritório de São Bernardo, mas você gostava mesmo é da caixa suja do aspirador de pó ― e continuou gostando aqui em Araçoiaba. Da lavanderia, da estante, da caixa suja do aspirador de pó.

Já para Guda nunca deu bola ― e ela tentou até o fim, um ano atrás. Como pode caber tanta rabugice em uma gata-anã, que pesou 2,5 kg praticamente a existência inteira (até perder 900 gramas nos dois últimos meses)? E que roubava glutadela com esta carinha. E miava feito cabrita, soltando barulhinhos onomatopeicos quando subia nas coisas, pulava no chão, percebia nosso toque, bebia água, mastigava a ração.

Aí, escolhi cuidar do Intrú, que não tinha a sorte de morar do lado de dentro da porta de vidro de alguém e resolveu montar acampamento bem do lado de fora da porta de vidro da sua lavanderia ― fiz justiça gastando a maior parte dos lencinhos umedecidos dele com você. Veio, então, a ataxia, a cistite e os sintomas respiratórios, uma possível artrose, um possível trombo, a apatia.

Eu não sabia se sentia dor ou estava só sendo ranheta você ― esperei sete anos para te ter enrodilhada no colo. Se a pele flácida era de desidratação ou velhice. Se voltaria a afiar as garras no tronquinho do gatil ― três meses antes, você caçava animada os croquetes no parquinho! O raio-x indicou apenas problemas na coluna pela idade. Mas você, sempre sem parada, seguiu aquietando ― e Jujuba insistindo em ficar grudada.




Achei que não passaria de sexta ― a do dia 29 de março! E escolhi parar a vida. Botei fraldinha, liberei o quarto para dormir, aquele em que você nunca pôde entrar porque tenho alergia a gatos, comecei a te carregar por todo o lado para garantir que não cairia. Mas você não morreu. Ficou presa em um corpinho que não funcionava direito ― hidratada, com as mucosas coradas, olhos brilhantes (os mais lindos de Gatoca), sem qualquer episódio de vômito ou diarreia.




Como não conseguia mais chegar sozinha no jardim, te ajeitei no catnip só para voltar com formigas na cabeça e uma lesma entrando na boca. Pensei em parar sua vida. Eis que você adorou o suco de maçã. De manhã, acordava com a carinha colada à minha, não importava em que posição te colocasse. E sonhava loucamente.


Escolhi continuar. E também sonhei: você encostava a testa na minha e pressionava nossas cabeças uma contra a outra com as patinhas. Parecia uma despedida. Quando um dos dentes se pôs a sangrar, escrevi ao veterinário da cidade perguntando sobre a eutanásia. Só no consultório.

Em vez do terror da viagem de carro pelas estradas de terra esburacadas, escolhi te levar no sling improvisado para um último passeio pelo bairro, que você sorveu com os faróis ainda mais gigantes, cada folha, cada bicho, cada portão ― surda há uns dois anos, os cachorros latiam no vazio.



De segunda para cá, a dúvida foi me consumindo: havia algo mais para aproveitar? Será que eu tinha passado do ponto? Nesta madrugada, você arrumou um jeito de me confortar. Ignorando quaisquer limitações neurológicas, deitou no meu peito e só percebi quando acordei pela primeira vez ― na segunda, você estava encaixada entre minhas pernas, como um pacotinho.




Partiu na sua inseparável cama nuvem (como encará-la desocupada?), enquanto ganhava um cafuné com a mão que não estava tentando responder os e-mails atrasados.


Não te dei uma família exclusiva, mas garanti 17 anos e dois meses de presença, trabalhando em casa muito antes de o home office ser moda. E uma aposentadoria entre capuchinhas e passarinhos, mudando para o interior de aluguel e tomando um golpe da empresa de contêineres.


Podem ter sido escolhas inexperientes, de gateira de primeira viagem, e desajeitadas, de quem tantas mortes depois ainda não aprendeu a perder. Mas você sabe que foram as melhores que consegui fazer, né?

20 comentários:

Anônimo disse...

Meus sentimentos Bia!

Anônimo disse...

<\3 Para sempre em nossos corações.

Anônimo disse...

Sinto muito! Que vocês fiquem em paz

Mauriceia disse...

A difícil sensibilidade de saber até onde podemos ir, até onde é nosso egoísmo em não querer perder nossos amores ou deixá-los partir!
A saudade, o vazio são eternos, assim como nosso amor!
Um abraço mto forte ❤️‍🩹

Renata disse...

Ah, chorei tanto aqui! Chocolate foi mais uma das felizes e inesquecíveis filhas e filhos do Gatoca. Uma vida linda e longa, uma homenagem linda! Um imenso abraço, Beatriz!

Anônimo disse...

Bia, sinto muito. Viva o seu luto.

Descanse em paz senhora Chocolate, sentirei saudades. Vai brilhar no céu agora.

Fiquem bem, Bia e Léo.

Simone

Anônimo disse...

Seguimos, sem saber se amamos o suficiente... e em cada perda, achamos que dava pra fazer mais...
Abraços enormes pra vocês, querida. Não esquece que você tem sido incrível!

Anônimo disse...

Que texto maravilhoso!
Não tem como não se emocionar.
Imagino a tua tristeza, apesar de ter proporcionado a ela a melhor vida que poderia ter. E o vazio que vai ficar

Anônimo disse...

Te abraço.
Vc continua sendo minha inspiração de força na vida.
AliceGap

Anônimo disse...

Chocolinda teve vida de rainha, com tudo de bom que você proporcionou a ela. Foi em paz, foi feliz. A saudade fica, junto com todas as lembranças queridas. Um abraço, Bia. Seu texto precioso e o vídeo do passeio no bairro nos inspiram a ser pessoas melhores sempre.

Bárbara disse...

Meus sentimentos, Bia. Tô chorando muito aqui, não consigo nem pensar em algo pra escrever, desculpa. Choco foi muito feliz, muito mesmo.

Anônimo disse...

É muito difícil tomar decisões quando não é pra gente. Aí a gente vai se guiando pela amorosidade, pela vontade de fazer o outro ficar bem e não há erro no amor.Tenho certeza de que a Chocolate te responderia que você fez as melhores escolhas sim. E que ela nunca poderia imaginar estar com outra pessoa que não fosse com você.
Ela foi numa nuvem, partiu num carinho. Foi em paz, porque foi preenchida de amor.
Que vc possa viver essa perda do jeito que é o seu. Não sei, fico achando que luto não tem prática, não importa quantas vezes a gente passa por isso sempre dói, porque cada ser que entra e sai da vida da gente é único.
Obrigada pelo lindo texto que me lembra tanto disso.


Daniela disse...

Ai Bia, que linda despedida.

Anônimo disse...

Nunca escondi minha preferência pela Choco... Misto de rabugice da Renata com a miudeza da Miucha. Abraço apertado, Bia ❤️

Anônimo disse...

Que texto lindo, Bia… Me senti no passeio com vocês. Como dói a despedida, a saudade… Sinta-se abraçada ❤️

Anônimo disse...

Nossa, tem sido difícil acompanhar, imagina vivenciar essas partidas. Mas o amor tá em casa gesto, cada palavra, cada compartilhamento sensível que vc faz. Obrigada por todos esses anos de blog, Bia. Aquece o coração cada vidinha dessas do gatoca. <3 um abraço apertado, em lágrimas aqui. Silvia, gatofru.

Anônimo disse...

Meus sentimentos, fiquei emocionada com a linda despedida. Sinta-se abraçada por mim e Blue 🐾

Anônimo disse...

É tão difícil quando partem! Chocolatinha teve uma vida longa e boa. Talvez preferisse ser filha única, mas parece que sempre conseguiu seu espaço de privacidade. Também deve ter sido quem se foi da maneira mais serena. Viva seu luto, querida Bia, no seu tempo. Chegará o dia de lembrar-se dela com um sorriso. Um abraço carinhoso.
Regina Haagen

Anônimo disse...

Ah, que triste e que lindo... E como é difícil decidir se esperamos a partida chegar naturalmente.

Anônimo disse...

Bia, queria tanto te dar um abraço... A Chocolate era muito parecida (em personalidade) com a minha Nina, que descansou agora em março... Saudade é o amor que fica!