E eu, que só tinha o Mercv, perguntei para a atendente se poderia te devolver caso a adaptação não desse certo — você, recém-abandonada em um saco de lixo com toda a ninhada! Se dependesse do seu gênio ariano adotivo, não daria certo mesmo. Mas Mercv te amou desde o primeiro instante. Hoje eu olho esta foto, que nomeei inexperiente como "beijo", e dou risada: você cogitava um ataque.
Aí, depois de sete anos e meio sem pegar um resfriado, apareceu um tumor, retirado com sucesso. E a hiperqueratose inofensiva, em 2015, que ninguém imaginou virar um carcinoma. Uma sorte, porque a quimioterapia te proporcionaria uma sobrevida de dois anos e você só baqueou nos últimos nove meses.
Nossa gestação ao contrário começou com o colar elisabetano, porque o machucado que nunca cicatrizaria passou a coçar cada vez mais e você transformou o escritório em um filme do Tarantino. Sem conseguir comer direito, a gente inventou de bater a ração úmida da Pet Delícia no processador e te dar de colherinha. 270 dias. Você curtiu cada um deles. E, quebrando a tradição mais uma vez, preferia lamber as costas da colher.
Não bastassem as limitações impostas pelo colar, ainda rolou um quase enforcamento com a coleira. Eu tentei muitos modelos e acabei te deixando o mais solta possível, com algumas derrotas para o carcinoma, porque você descobria novos jeitos de se libertar. Ninguém aproveitou tanto o terreno da nossa casa nova, aqui em Araçoiaba da Serra — o resto da gangue precisou se contentar com o gatil. Eu via seu colarzinho espetado no gramado, ao longe, e te chamava de girassol, lembra?
A primeira bicheira não demorou a nos aterrorizar. E tirei tantos ovos da sua cabeça depois dela que não sei de que jeito a segunda conseguiu evoluir. Você só desistiu dos passeios há quatro semanas, quando ficou cega de vez — o olho direito o carcinoma já tinha roubado no início da nossa gestação ao contrário. Como sobraram os insetos, criei as coleções "primavera-verão" e "outono-inverno". Várias vezes por dia alternava a "cobertura" entre o lençol e o edredom. Sempre com o Mercv colado — eu sei que sua paixão era o Simba, mas ele aceitou o segundo lugar com elegância.
Seus irmãos se afastaram porque seu cheiro mudou. Ele não se importava. E, quando eu limpava seu rosto com o paninho úmido quente, precisava tirar pus e sangue do pelo do coitado.
Me desculpa por ter gritado na noite em que você fez xixi na coberta? Era desespero de te deixar com frio. E, enquanto a máquina de lavar trabalhava, eu esquentava o lençol com secador, na esperança de me redimir. Bateu 2ºC naquela manhã — não esqueço porque esfreguei o colar no tanque com os dedos adormecidos.
Tentei colocar alarmes a cada duas horas para te levar ao banheiro. E fomos bem até o dia da diarreia. Eu só tinha experiência com fralda + gato paraplégico e fralda + bebê humano sem garras. Não foi fácil. Insistia só para te ver devorar feliz a xicrinha de patê. Esse era nosso acordo: aproveitar a comida, o sol no jardim, ainda que no colo, o carinho.
Anteontem você não conseguiu. Parece que o carcinoma chegou na mandíbula e a gente quebrou o galho com a pipeta, depois ficou só na água e ontem não desceu mais nada. Você miou sofrido quando sentei no gramado, dando a entender que preferia voltar. E nunca mais ronronou. Eu procurei um veterinário para te ajudar a descansar, mas quis dar a chance de ir sozinha primeiro. 24 horas, muitas lágrimas, meia oração, porque também não sou boa com protocolos.
Ajeitei seus 2,35 kg (de 6!) no meu quarto, aquele que ninguém entra porque sou uma gateira alérgica a gatos. Acordei nas três vezes em que você engasgou, botei no colo, arremessei o colar — você não precisava mais. Quando amanheceu, te trouxe para o sol e Mercv tratou de reassumir seu posto:
Foram dez minutos. Você gritou, eu te embalei e nublou.
Amanhã, quando abrir a janela do quarto, você será girassol.
*
Antes de morrer, sonhei que Clara tentava por três vezes, bem baixinho porque estava fraca, me dar um recado: "Se desesperar... Se desesperar... Se desesperar... pega uma bandeira e coloca no altar". Foram 12 dias quebrando a cabeça até me tocar que bandeiras representam coletivos — ordens religiosas, templárias, torcidas de futebol, brasões familiares.
E, quando pedi, a ajuda veio. Minha mãe e meu pai em sonho também, Tati Spinelli com um reiki que só fiquei sabendo depois (estrelado por Santa Clara e Pachamama!), Amanda Herrera perguntando se estava tudo bem, Mari Levischi mandando um vídeo sobre o tempo das coisas que importam. E Rose Hacklaender com a intermediação para a eutanásia desnecessária.
Eu não teria conseguido cuidar da Clara assim, aliás, se trabalhasse fora. Devo esse privilégio aos apoiadores do Gatoca, que me acolheram emocionalmente muitas vezes também. Ao Edu e à Maru, veterinários que viraram amigos, vieram ao interiorrr para consultar a retalhinha e responderam inúmeras mensagens fora do horário comercial. E à Mônica Campiteli, que nos socorreu no episódio da bicheira, uma das coisas mais desafiadoras que encarei na vida.
No final dessa gestação ao contrário, precisei apelar às drogas. E voltei para o corticoide, depois de cinco anos limpa e uma madrugada sufocando no hospital. Dr. Vagner passou semanas me acompanhando a distância, por texto e videoconferência, até desistir de cobrar pelas consultas — que loteria nenhuma no mundo pagaria, na verdade.
E, em todos esses momentos, cá estava ele: Leo Eichinger, o Mercvrivs que Chicão mandou para mim. ❤️