A forma mais fácil de contar uma história é a cronológica. Mas a vida não quer saber o que aconteceu primeiro. Vem passando por cima do sono e da fome com suas demandas egoístas, e obriga a gente rabiscar o cronograma 20 vezes. No sábado, rolou a segunda parte do mutirão de castração no DER. Eu pretendia escrever sobre isso. Junto com as três gatas, os nove filhoticos e o cachorro fujão, porém, Pretinha adoeceu ― lembram da peluda que me rendeu um talho na mão?
De mucosas amareladas, ela parou de comer, virou meia e passou a andar com dificuldade. Para ajudar no diagnóstico, Drª. Ana Lúcia pediu exames de sangue e ultrassom, que o pessoal do R&K executou com o maior carinho (e 30% de desconto). Karolyne, a neta de 13 anos da dona Ermínia, fez questão de acompanhar as cirurgias da trupe, a consulta da pretolina e ainda faltou à escola ontem, dia do laboratório.
Subiu a ladeira da comunidade de batom, se emocionou olhando as imagens cinzentas no monitor da veterinária e comentou animada que o avô havia recebido a aposentadoria e compraria a primeira caixinha de areia para os bigodes ― eles usam o barraco sem janelas de banheiro e quem vê primeiro limpa (quando não dá o azar de pisar).
Estiquei o caminho da volta até o pet shop e coloquei no carrinho duas bacias grandes, pazinha, cinco pacotes de granulado higiênico, sachês e latinhas de sabores variados. Dona Ermínia me recebeu com uma xícara de chá de camomila, que, mesmo detestando, eu tomei até o fim. E seu Moacir, homem de poucas palavras, sorriu pela primeira vez.
Hoje, com o resultado dos exames, nós pedimos socorro ao Dr. N., vizinho da comunidade. A coisa é séria: anemia severa, infecção, hepatose. Karol aprendeu a medicar (corticoide uma vez ao dia e antibiótico, duas), a dar papinha (Nutralife Intensiv) na seringa, a endurecer para amolecer. E eu fui pagando ― R$ 472 já, porque Dr. N. não cobrou a consulta.
Quero que Pretinha tenha uma chance, mesmo que pequena. Mas quero ainda mais mostrar a Karol que vale a pena sair da zona de conforto para deixar o mundo melhor. E o mundo começa com quem a gente já sabe que ama, para se esparramar por desconhecidos que a gente aprende a amar.
P.S.: No próximo post, publico as fotos individuais dos bebês, que a família topou doar. Toda ajuda é bem-vinda: com dinheiro, divulgação, apoio moral. :)
Na caixa de sapato ensopada, entregue pelo mendigo, ela virou Vitória. Jantou caldinho de sachê, dormiu embrulhada na camiseta e convulsionou de manhã, quando Sheila (lembram da dona do Pãozinho?) me ligou.
No veterinário, entre pulgas, Vitória virou Vitório. A suspeita era de hipoglicemia e o tamanho apelativo rendeu-lhe a doação da papinha importada para desmame.
No dia seguinte, amado como todo animal deveria ser, Vitório virou Derrota. E, sob olhares impotentes, a pantufa de urso murchou.
Mantendo o recorde da comemoração mais atrasada de Gatoca, Cho* apagou suas oito velinhas ao lado do amigo palhaço, que não ronca de madrugada, não come com a televisão ligada nem alimenta o ódio de classes. E, como boa capricorniana, segundo a nova versão do horóscopo, ainda fez cara de fofa para a foto.
Pandora é como os vinhos, só que mais peluda: fica melhor (e maior) a cada ano. No último aniversário, ganhou mamão por causa da insuficiência hepática e estava tratando a artrite com acupuntura, lembram? Neste, recusando-se a avinagrar, voltou ao Biscrock, às corridas pelo jardim, à latição em matilha.
Para comemorar, eu levei batalhoada e a família completa, incluindo o irmão de desvio de septo recém-operado. E, quando São Pedro fechou o tempo, a gente tratou de abrir a conversa. E as risadas. E os apertos.
Eles foram publicados de madrugada, nos feriados, entre lágrimas, com taquicardia. Para continuar divertindo, ensinando, sensibilizando leitores de língua portuguesa a arregaçarem as mangas pelo mundo. E o mutirão de castração, pensado para beneficiar 50 cães e gatos da comunidade do DER, aqui em São Bernardo, rendeu de bônus uma coleção de histórias emocionantes.
E o layout de brechó se modernizou, deixando a naftalina para os oito anos de textos do arquivo ― antes que alguém reclame, as fotículas dos bigodes estão no "Quem somos", muito mais arrasadoras. E vocês não precisarão esperar o próximo financiamento coletivo para apoiar o projeto. Basta clicar no banner do topo da coluna da direita (ou aqui).
Você planeja cada detalhe (1, 2 e 3), pede ajuda para deus-e-todo-mundo, acorda de madrugada com ideias precisadas de papel, faz o namorado ir à 25 de Março comprar pulseirinha de identificação. Mas, só na hora em que se depara com a praça da comunidade cheia de famílias e cães e gatos (domingo, às sete da manhã!), é que tem a dimensão da complexidade da coisa.
E não estou falando de preencher a agenda de cirurgia com os dados dos animais por ordem de chegada (respeitando a divisão entre bigodes e focinhos), prender as pulseirinhas na pata dianteira direita, tirar as dúvidas dos tutores, responder as mensagens da veterinária, colocar todo mundo nas caixas de transporte (mesmo os rosnadores), ajeitar nos quatro carros disponíveis e no caminhãozinho do Luis, dirigir até a clínica.
Ou de operar dezenas de bichos no mesmo dia.
Dr. Rodrigo e Dr.ª Ana Lúcia pilotando as tesourinhas, Adriana e Leda no suporte
Centro cirúrgico
Antes e depois
Técnica minimamente invasiva
Cuidado
Nem de forrar as caixas com tapete higiênico no pós-cirúrgico, separar a quantidade certa de remédio (segunda dose do vermífugo e antibiótico) para cada paciente, escrever mil cópias das instruções, ajeitar todo mundo nos carros e no caminhãozinho de novo, dirigir de volta a São Bernardo, entregar os peludos às famílias, enfatizando as recomendações veterinárias, acompanhar vários deles até suas casas.
Havia 11 voluntários para me ajudar nisso ― obrigada, Leo Eichinger, Mariana Levischi, Denise Granja, Fernando Paulino, Rosa Yukari, Casé Nagot, Tati Pagamisse, xará do Leo, Sheila Santos, Luis e irmã fofa! Obrigada, também, Carol Toledo, Paula Ramos, Amanda Herrera, Fernanda Dias, Dani Xavier e Bruno Fernando, pelo empréstimo das caixas. (Bruno tem um pet táxi que eu recomendo de olhos fechados, gente!)
Quando escrevo "complexidade da coisa", me refiro aos acontecimentos que fogem do nosso controle, como as desistências sem satisfação, a sialata que não estava em jejum e quase sufocou com o próprio vômito, as duas gatinhas em início de gestação que perderam os bebês, o cachorro com testículo ectópico (fora do lugar).
No percurso até Santo André, um dos meus passageiros deu uma de Houdini e fez xixi no carro inteiro.
E o feito virou piada comparado à notícia estarrecedora de que um dos cães do caminhãozinho havia estourado a caixa de transporte e desaparecido bairro adentro. Foram mais de sete horas de buscas ininterruptas, o mamão das 6h vencido no estômago, um par de pernas que mandaram lembranças o resto do mês. Em vão.
Às 16h, com os animais operados precisando retornar à comunidade, a gente resolveu pedir socorro à Jane ― nunca mais vou esquecer os olhos afogados da Emily, sua filha adolescente. E outras cinco horas de via-sacra motorizada e a pé por Santo André se sucederam. Não sobrou uma viela por onde nós não tivéssemos passado. Um morador que não tivesse ouvido o assobio da Jane. Um segurança do entorno do terreno onde Napoleão foi visto algumas vezes sem nosso telefone.
Perto das 22h, derrotados, um motoqueiro bateu no meu carro. Ainda faltou contar do Enzo, o poodlelata que passou a tarde no soro, por causa de uma crise de convulsão. Dr.ª Ana Lúcia cobrou apenas a aplicação do remédio, deu uma caixinha à família e insistiu que ele voltasse para investigarem a causa das convulsões, com desconto-vaquinha-o-que-precisasse. Deitei vazia.
Às 4h30, o celular me pegou acordada. Como faltam palavras no dicionário para descrever reencontros desacreditados, preferi filmar.
Napoleão foi adotado pelas meninas filhote, quando sua tutora, idosa, faleceu. Já tinha escapado uma vez e, aos 3 anos, só aceita as duas ― provavelmente, morreria na rua. Sem paciência com as marcações de território, o avô vive ameaçando doá-lo. A castração coroará o final feliz, assim que o fujão se recuperar do susto. :)
Enzo não sobreviveu. Liguei para a dona Maria Marinês na sexta, depois de passar a semana em curso, acordando às 6h e indo dormir às 24h, e fiquei sem reação, segurando o aparelho no ouvido. Como os exames cardíacos não acusaram nada, restou a suspeita de problema neurológico. E ela não me deixou ajudar com a conta do hospital. "Eu trabalho, meu marido trabalha, tenho uma filha professora, outra designer. Cada um pagou um pouquinho".
Percebendo meu silêncio constrangido, emendou: "As coisas acontecem na hora que têm de acontecer. O mutirão não deu certo para o Enzo, mas beneficiou outros animais, não é?". Dez cachorros (duas fêmeas e oito machos) e 27 gatos (dez fêmeas e 17 machos). Fora a segunda leva, que não pôde ser operada agora. "Então, não desanime. E venha aqui em casa, um dia desses, para tomar um café".
Nas madrugadas seguintes, quando o coração apertava, eu relia a mensagem da Ana Carolina, tutora da Ágatha:
E lembrava do sorriso das famílias na pracinha, recebendo seus amigos quadrúpedes.
Mutirão de castração é, definitivamente, para os fortes.
Esta história não tem nada a ver com o mutirão de castração no DER. Mas me estraçalhou ontem à noite e precisa de ressignificação. Na penumbra da Avenida do Estado, um cachorro preto andava desorientado entre as pistas. Leo parou o carro, outros dois motoristas também e a imagem do segundo cachorro preto, deitado no asfalto, gritou aos olhos.
Um moço de roupas sujas recolheu-o desajeitadamente e colocou na calçada. Não ia socorrer. Desci pronta para passar a madrugada no hospital. Não tinha o que socorrer. Atropelado por dois veículos na sequência, o animal morreu na hora. Era fêmea, seis meses recém-completados na família de carroceiros e pouca intimidade com a rua.
"Eu bobeei", o moço se martirizava, enquanto a esposa chorava e a criança perguntava se a amiga nunca mais acordaria. "Adotei pequena, ela não desgrudava da gente, eu bobeei", repetia com as mãos na cabeça. Não sei os nomes de ninguém, não fotografei, só sentia muito. Mais ainda pelas pessoas que roubaram aqueles 180 dias de afeto e sequer viraram para trás.
Desolada, a moça pediu ao marido que ajeitasse a cadela nos papelões, para levarem para outro cantinho ― foi essa palavra mesmo que ela usou. Eu só consegui perguntar se precisavam de algo. "Não, dona. Com a carroça, a gente vai vivendo. Não falta nada". O que faltava ninguém poderia repor.
Não cabe na carteira. Nunca caberá em um coração indiferente.
Nas andanças pelo DER, sempre que eu cruzava com um animal castrado, citavam a moça da moto verde. Não foi fácil encontrar seu casebre, muito menos convencer a vizinha a passar seu número de celular. Mas o feeling jornalístico sabia que valeria a saliva. Quando ela contou que levava a bicharada no Centro de Controle de Zoonoses, eu automaticamente supus que trabalhasse lá. Sorte que, diferente dos roteiros de Hollywood, a realidade ainda nos surpreende.
Cida, 52 anos, dois cães e 14 gatos (vários deficientes), é diarista. Ajuda os animais da comunidade há uma década, primeiro pagando as cirurgias do próprio bolso, dívida que ultrapassou os R$ 3 mil, depois com o apoio de protetoras ligadas ao CCZ, apresentadas pela patroa de longa data. No ano passado, sua atuação dedicada rendeu uma vaquinha gorda entre a mulherada para a ampliação do sobrado de janelas teladas.
― Esse amor pelos bichos veio dos seus pais?
― Pais? Eu fui garota de rua, menina. Levava os cachorros que se machucavam para o hospital de gente e convencia as enfermeiras a tratá-los.
P.S.: Para que Cida continue mudando o mundo, o Gatoca doará todos os vermífugos e antibióticos que sobraram do mutirão. :)
A gente deveria cadastrar só cachorros machos, mais rápidos de castrar, para liberar espaço na clínica aos bichanos, maioria em número de inscrição, e uma panelinha não estressar a outra. Mas havia sobrado 19 vagas da epopeia de sábado e eu sou mole, vocês sabem. Na quarta-feira, liguei para a Ilma Teresa e a Ana Carolina, e voltei ao DER munida dos formulários e vermífugos.
Ilma levou a Cindy, de 7 anos, e o pacote família com recém-nascida, sobrinho e cunhada. Marli ajuda a cuidar da cadelinha da sogra, que tem Alzheimer e não a reconhece mais. E sofre todo dia para convencê-la a comer ração, porque suas refeições vinham da pizzaria. Carol chegou sozinha, para evitar o assédio à peluda no cio. Há dois anos, sua vizinha deixou na garagem uma caixa cheia de filhotes, para que pegassem feito saldão. Agatha sobrou porque era fêmea.
No fim de semana do carnaval, lá fui eu sambar pelas vielas da comunidade de novo. Cida, diarista-protetora que merece um post exclusivo, me acompanhou para quebrar a possível desconfiança do pessoal. E, como São Francisco deve ter se sensibilizado com nosso esforço, um morador passou a indicar outro, completando finalmente as 50 fichas.
Minha xará aparece na foto com o Branquinho, de 7 meses, porque os mais velhos vivem na rua. Pixano, de 4 anos, já foi envenenado três vezes. E Luki, de 1, caiu no esgoto e teve de ser resgatado pela casa da vizinha.
Maria Neusa resolveu mudar o visual e saiu da cabeleireira com o Neném, de 4 anos.
Desde pequeno, Lucas leva para o casebre da Maria Verônica os animais que encontra pelo caminho. Mel e Listrado, irmãozinhos de 8 meses, estavam na laje de uma amiga ― caminho não é só terrestre.
Desta pretolina, a gente não sabia nada. Só que era da dona Ermínia, a senhora responsável por superpopulacionar a comunidade com sua coleção de gatos não castrados e que se recusou a nos receber. Dona Cida topou abrigá-la durante o pré e o pós-operatório e eu ganhei um talho na mão tentando medicá-la.
Na prateleira de remédios da dona Maria José, não pode faltar antitóxico. Com o vidrinho milagroso, ela salvou Pixano e vários outros bichos de lá. O filho, coração de pudim igual, faltou à escola para buscar Bebê na casa da namorada, de ônibus, há sete anos.
Esta não é a melhor foto, mas me tira o sorriso mais gostoso. :)
Lembram da dona Ermínia? Antes de ir embora, eu arrisquei bater mais uma vez a sua porta. Disse que entendia o receio e mostrei os bigodes no celular. Mas quem a amoleceu foi Karolyne, a neta, que confessou não aguentar mais cuidar do Azulão machucado de briga. Pretinha entrou na lista também e só depois eu me toquei que se tratava da gata do talho na mão ― da segunda vez, ela tomou o vermífugo numa boa. rs
"E os oito animais restantes?", um leitor atento deve estar se perguntando. São cópias desta coisícula, que ainda não podem entrar na faca. Nós também castraremos as duas mamães, assim que terminar o período de amamentação, porque Gatoca é de humanas, não de exatas.
Perdoem o horário, o texto telegráfico e os eventuais erros de português. Este post é para ser bonito. Há exatos cinco minutos, vesgos e exaustos, nós finalizamos a migração de quase oito anos de história do Gatoca para o layout novo. Leo Eichinger fez toda a arte e Jon Levischi programou cada pixel, pensando em tornar a leitura de vocês ainda mais fodástica.