- Sabe o que seria perfeito para o Hórus, Mari?
- O quê?
- Um adotante que trabalhasse em casa, como eu. Assim, ele teria companhia em tempo integral e estranharia menos a mudança.
- Você não quer mais nada, né?
O problema é que o pequeno acabou instalado aqui no escritório (onde eu passo a maior parte do dia), por causa dos vômitos pós-castração, e criou uma falsa idéia de exclusividade. Como abrigar dois Mercvrivs sob o mesmo teto, se ninguém topar adotá-lo? Eis que, na tarde seguinte, eu recebo este e-mail de arrepiar até os fios de cabelo que já haviam caído da cabeça:
Olá, Beatriz!
Tudo bem? Eu moro em um prédio, no Alto de Pinheiros, em São Paulo. Comecei a trabalhar em casa recentemente e gostaria muito de uma companhia. Você sabe qual é a idade do Hórus?
[]s
PauloBem que dizem que a gente deve tomar cuidado com o que pede! Respondi a mensagem do Paulo e fiquei ainda mais surpresa de constatar, ao longo do vai-e-vem de bits, que não precisaria convencê-lo sobre a importância das telas de segurança. Combinamos a entrega para depois da instalação, que demorou umas duas semanas, por culpa das mancadas da empresa.
No último sábado, a caminho do Alto de Pinheiros, metade de mim vibrava de felicidade, enquanto a outra metade planejava pegar o retorno na Marginal e esconder o doce de batata doce na gaveta das meias. E se ele se sentisse novamente abandonado? Acho que esse receio é que faz o coração de quem doa dividir o espaço com as lascas de madeira no depósito dos apontadores.
Cintia, a namorada, atendeu a campainha ostentando um sorriso de dar a volta na nuca, que não diminuiu com as proporções de javali do filhote (ufa!). Hórus saiu da caixa de transporte receoso, cheirou o sofá e sumiu de vista. Soube que a busca do casal por um peludo já durava meses e o tigrinho só ganhou a concorrência pelo nome. A engenheira de software adora mitologia egípcia e pretende tatuar o olho do deus celeste em breve.
No pet shop, enfiaram-lhe uma cama gigante de oncinha, areia de sílica, shampoo para banho a seco, brinquedinhos variados. O mal agradecido retribuiu a enxurrada de presentes se espremendo no fundo oco do rack da TV, esconderijo que nós só descobrimos após revirar o apartamento inteiro (incluindo a lixeira do banheiro e os eletrodomésticos da lavanderia).

Tirei meia dúzia de fotos da família recém-formada, despedi-me do companheiro de labuta e corri para alcançar o carro antes da primeira lágrima.

Hórus faz uma falta danada. O escritório ficou morbidamente silencioso sem os gritinhos empolgados quando a gente chega da rua ou quando o saco de ração dá sinais de vida na sala.

As cordinhas de pijama permanecem inertes, o rolo de papel higiênico inteiro, os ímãs no mural. Ninguém se joga no chão assim que a porta se abre, oferecendo o barrigão para um cafuné.

Nem seu rostinho desponta mais na janela da cozinha, enciumado pela presença de algum intruso no meu colo, durante o café da manhã.

Eu podia, sim, cuidar de mais um bigode. Mas Hórus não é mais um.
Epopéia do Hórus na busca por um lar:::
Como tudo começou ::
Caçador de cabelo ::
Doce de batata doce::
Festa do papel higiênico::
Era uma vez um dente de leite...::
Cera de ouvido para o jantar::
Zé do Caixote