Miharu se apaixonou pelo Marley desde que eu publiquei a
história do seu resgate aqui no blog. Mas preferiu deixar a adoção para alguém que já não tivesse 12 bigodes, 11 focinhos e cinco carpas. Eu também me apaixonei pelo terreno de 3 mil metros quadrados das fotografias, mas achei melhor esperar por um candidato que não morasse tão longe. Acontece que o tempo passou e ninguém se interessou pelo nosso querido-cão-demônio.
Com a jornada dupla de trabalho, o abandono da
Pandora, a suspeita de pneumonia e a batida do Escortinho, a vida ficou pesada demais em
Gatoca. Marley quase não passeava, os gatos acabaram totalmente negligenciados. Foi quando Miharu e eu decidimos arriscar o "intercâmbio cultural". Dia 26 de dezembro, Rose (Cachorreira Militante, Louca por Gatos) saiu de Sorocaba com o chiqueirinho do Zafira preparado e, às 9h, nós caímos na estrada.
Mesmo entupido de Acepran, o aloprado tentou enterrar o osso ganho de presente no porta-malas, perseguiu os cachorros do restaurante em Registro, brigou com todos os ônibus do percurso. Nossa despedida, aliás, iniciou-se na noite de Natal. Por causa dos fogos de artifício, Mariana e eu passamos uma hora trancadas com a criatura dentro do carro, o rádio ligado, as orelhas cheias de algodão. Bastava uma parar de chorar para que a outra recomeçasse.
Tirar o figura de casa mostrou-se tarefa bem mais difícil do que encarar as seis horas de viagem. Na mansão de Santa Felicidade, ele correu e latiu tanto, que fez cansar dois rottweilers. Ainda roubou um osso esquecido pela turma no jardim. Miharu instalou suas quinquilharias bernardenses no casebre da horta, com direito à sofá e cobertor. Na primeira bronca, porém, o ingrato quase lhe arrancou o dedo, mostrando a qualidade da educação que recebera na terra das batatas.
A madrugada atingiu o clímax dos filmes de terror, graças aos uivos compridos que insistiam em testar meu desapego. Sábado, o sem noção conseguiu fugir para a área dos akitas, um casal de ursos que fica separado dos demais cães pelo histórico de rinha. Não imagino de onde arrumei coragem para apartá-los antes que o sangue tomasse as paredes. Arrisco até a dizer que o macho de modestos 60 quilos curtiu a idéia de ter um companheiro de aventuras.
Domingo, foi dia de trocar cafunés, brincar com a corda-esfregão e o humano de pelúcia, marchar no pote de água. A adaptação superara as expectativas. Eis que a segunda-feira amanheceu nublada como o meu coração. E Merlin (rebatizado por motivos óbvios) resolveu jogar todos os seus pertences no gramado, em protesto à minha partida. Andava de um lado para o outro inquieto, só queria saber de morder. Machucou meu braço feio, tentando prender minha blusa junto com a camiseta do Harry Potter, lembrança dos nossos cinco meses de convivência.
Expliquei, entre soluços, que ele havia se mudado para ser mais feliz, ter amigos peludos e um espaço arborizado à altura de suas peripécias. Claro que sentiremos falta do focinho grudado na janela pedindo biscoito, da empolgação ao passear de carro, da recepção animada no portão, das contorções desajeitadas para caber no colo, das cavalgadas no estacionamento da faculdade de direito, do olhar canino mais doce do universo.
Ainda me pego evitando fazer barulho de manhã para não acordá-lo, pensando no melhor momento de levá-lo ao parque, separando saquinhos plásticos para recolher os cocôs, vestindo roupa velha na hora de atender a campainha.
Mas Marley não é mais o "cachorro da garagem".

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