Eu voltei de Curitiba achando que jamais conseguiria outra doação como a do Marley, mesmo que o coração de pudim insistisse em batucar por décadas a fio. E quando a Rose ligou para contar que havia decidido ficar com a Pandora, duas semanas depois, não pude frear o impulso de me beliscar. Se o escritório sucumbisse a um motim de fadas e gnomos, no minuto seguinte, seria melhor preparar um contra-ataque.
A viagem da pantera a Sorocaba já estava até marcada, mas tinha como destino o quintal de uma família mais-ou-menos, só para livrá-la da solidão do sítio temporário. De tanto que eu resmunguei na orelha de São Francisco, porém, o povo acabou trocando a pastora por um casal de poodles e, na mesma noite, Rose sonhou com uma cachorra preta pedindo para entrar em casa.
"Há dias ando preparando nove bolachas com requeijão para o café da manhã dos focinhos, ao invés de oito. Deve ser um sinal", tentou justificar a escolha irracional. "Podem gravar o comercial de margarina", eu pensei no ato. E nem me importei com as três horas e meia de trolebus-metrô-viaçãocometa (boa parte do percurso em pé, em pleno sábado) rumo ao interior.
No canil do Capim Santo, Pan nos recebeu empolgada, alternando pulinhos de euforia com o pavor de um novo abandono. Tremia de dar dó. O comportamento esquisito não passou nem no condomínio chiquérrimo da Ana Hickmann e do Raul Gil. Bastava eu mudar de cômodo, para que a coitada desandasse a chorar, gritar, fungar o nariz. Tudo isso junto.
Sorte que a paciência e o carinho dos Fenselau se mostraram ainda maiores que o terreno de 2,5 mil metros quadrados. A simpatia da princesa por Detlev, aliás, foi instantânea. Bem como a aceitação do exército de peludos. Nina logo quis brincar, Lumpy arriscou um galanteio no estilo Don Juan canino, Bob soltou três bufadas e desistiu de fingir hostilidade, Preta limitou-se a ignorá-la.
No segundo turno de apresentações, Mel, Lili e Dexter agiram de forma igualmente gentil. Apenas Zelda, o exemplar gigante da turma, permaneceu presa (e mal humorada). Para diminuir a agitação, Pan ganhou leite de cabra morno, pãozinho mergulhado no floral, ração úmida com calmante fitoterápico. Podia beber água na piscina quantas vezes desejasse e chegou a simular uns tropeções para abrandar o calor.
Agora, precisará aprender alemão para entender as broncas, agrados e instruções de convivência pacífica. Abrir portas e pular janelas ela sabe bem. Fez uma demonstração especial, inclusive, no domingo, enquanto eu arrumava a mala para ir embora (após passar a madrugada inteira gemendo na garagem). Como parte do ritual de despedida, entreguei-lhe a clássica camiseta fedida, que Rose comentou ainda servir de travesseiro, e saí correndo.
De vez em quando, a fiel escudeira me procura pela casa, mas não se desespera mais. Virou confidente da Zelda (quem diria?!), arrisca participar das latições da matilha contra os transeuntes, rouba as bolachas com requeijão dos desavisados, assiste televisão no pé do Christian. Até o cocô melhorou, embora o exame tenha acusado a presença de vermes. O veterinário acha que ela enfrentou, no mínimo, cinco invernos ao longo da vida.
Espero, minha grande amiga, que daqui para frente você só respire primaveras. :)
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