Ainda não acredito que você e Jujuba, as irmãs mais ariscas da ninhada parida em casa, ficaram por último ― 17 anos e 5 meses e meio, no seu caso. E que a frajolinha assustada que criou asas para grudar no teto de tela, em Sorocaba, quando o entregador passou com as telhas pelo quintal, terminaria no colo. Ronronando.
Aqui também sofreu o ataque do Intrú no gatil e tudo desandou. Entre o abscesso de agosto de 2023 e os vômitos de sangue (as diarreias explosivas viriam depois), comecei o rascunho desta despedida. O arquivo marcava 28 de fevereiro!
Como no dia em que escapou da mordida do Marley andando pelas paredes de São Bernardo, hábito "Matrix" que levaria contigo em todas as nossas mudanças de cidade, você fugiu da morte desviando pelas paredes metafóricas de 2024 ― enterrou Chocolate e Pimenta, que nem ruins estavam, apesar de renais.
E demandou uma jornada quase integral de cuidados, que eu constatava sempre que recebia o relatório do celular ― Youtube para as tarefas mecânicas, WhatsApp para conversar com o veterinário, alarmes para encaixar a rotina em blocos de 40 minutos (os intervalos das seringadas de comida).
Se o ataque do Intrú acelerou sua partida, ele se redimiu emprestando a energia que faria falta à Jujuba, porque você passou a dividir a porta de vidro da lavanderia com o gorducho ― só que do lado certo. E Jujuba acolhia seu 1,7 kg nas madrugadas.
E assim você foi apagando no seu tempo ― a doença renal crônica não conseguiu te desidratar, deixar o hálito fétido ou roubar o apetite amarelando as mucosas. Mas causou um déficit metabólico que tornou os nutrientes da última semana inúteis.
Insegurança na caminhada, xixi fora do banheiro (que você já confundiu com restaurante!), meio pacote de fraldas de bebê ― e miadinhos (que agora me desmontam como alucinação auditiva) para virar de lado no sofá, ganhar mais comida ou uma forcinha com o cocô.
Ontem de manhã, quando o sol rasgou uma trégua nos dias chuvosos, senti que estava esperando para se despedir do jardim. E testemunhei uma última ressurreição:
Você travou a boca para o sachê favorito, conquistou o direito de dormir na cama com minha alergia a gatos (Jujuba de vigília na porta) e, às 2h, amolecida no meu peito exausto, esticou determinada os bracinhos para o alto, como se abraçasse alguém, depois apertou-os contra minha mão.
Este post deveria ter sido escrito no dia 20, mas, pela primeira vez, de oito, não consegui (e atualizei nos dias 23 e 24, com fotos que haviam ficado de fora)
Lembro de encher o cabelo da Mari de marias-chiquinhas e passear orgulhosa de mãos dadas com ela, como se fosse minha filha ― não tem nem três anos de diferença entre nós. De 1995 a 2003, passei pomada em dezenas de hematomas de quimioterapia e exames da minha mãe. E só aceitei revezar as madrugadas de hospital com meu pai, na última internação, quando acordei de um desmaio com ela me segurando no banheiro junto com o cabide de dreno, soro e medicações.
Meu pai, a quem depois ofereci acompanhar nos alcoólicos anônimos, mentindo que também exagerava na bebida, só para encorajá-lo. Por causa deles, a morte e o vício, assumi a casa e os dois irmãos aos 23 anos, João com 16. Aprendi que amaciante não se enxágua, acumulei boletos, participei de reuniões de escola, dei conselhos sobre sexo.
Sou uma pessoa que cuida.
E ri quando Maru te identificou como minha gata de cura, dado o exagero dos bigodes, que quase se tocavam nas pontas. Fazia todo o sentido compartilharmos a alergia respiratória ― ainda que você também interpretasse o papel de alérgeno, rs. Seus superpoderes sempre reconheciam um coração precisando de aquecimento.
Foi um choque te ver tombar em dois meses e meio tudo que não havia envelhecido nos 17 anos anteriores, justo porque resolveu caçar uma aranha (ou qualquer bicho de fora da sua caixinha de brinquedos), responsável pela reação alérgica que colapsou de vez os rins ― em algum momento, precisarei lidar com essa caixinha, já que são raros os gatos autobrincantes. Mas não hoje. Por isso, inclusive, atrasei este post em dois dias.
Sem você aqui para lamber meus cabelos, tomei como remédio a visita mediada pelo pessoal do Museu de Imagens do Inconsciente à exposição da Nise da Silveira, lembrança dos tempos de curso do Jung na PUC. Leo, que não tem minha facilidade com as palavras, fez hambúrguer para o almoço, pizza para o jantar e nem me julgou por comer lasanha no café da manhã. Li comédia romântica na cama até mais tarde, maratonamos um seriado da terceira idade ― mas eram ladras!
Agora, preciso arrancar o band-aid.
Você protagonizou a clássica jornada do herói, na versão Pixar. Antes mesmo de enxergar, recém-nascida, já estava liderando a aventura de desbravamento pela lavanderia do casarão herdado, que fez despencar degrau abaixo suas quatro irmãs. Não tinha nome melhor do que Pimenta! ― quer dizer, Mariana te apelidou de Devedora Temedora, o que também fazia jus. Era a única integrante da família Guda que eu sempre soube que não doaria.
E o miado fininho enganava. Lembra quando deu um baile na faxineira e fugiu pela amoreira do jardim de inverno, que deveria ficar fechado? Ou do contorcionismo para caber nas gavetas? E quando Intrú invadiu o gatil para bater na Keka e você o botou para correr? Depois, Leo ainda esqueceu uma porta aberta e precisei separar você e o frajola duas vezes maior, engalfinhados embaixo do contêiner, a gritos.
Claro que a gata de pelo longo tinha de ser a mais bagunceira. Cheguei a pegar uma lesma ressecada na sua barriga! E perdi a conta de todas as vezes em que você caiu da prateleira rolando empolgada ― o que também fazia no banheiro. Prateleira da parede customizada com catarro, aliás, que a gente não vencia de limpar. Até dormindo você parecia combater o crime ― sempre imaginava um narrador bradando: "Para o alto e avante!".
E bastava esticar o tapetinho de ioga no chão para sua cara se materializar na minha, dando sequência a uma sucessão de espirros.
Quando Leo descia para o estúdio, você ia correndo na frente ganhar carinho de bunda no tronquinho feito justamente para vocês ― ele não chorou como eu, mas sei que ficou abalado porque passou a matar todas as aranhas que encontrava pelo caminho (em casa de vegano, até barata a gente espanta).
Para compensar as inalações, passei a te levar para passear pelo terreno, proibido aos gatos que conseguiriam escalar 2 metros de muro. Mesmo desequilibrando, você adorava xeretar a bagunça da oficina. Depois, retomava o fôlego nos bambuzinhos ao lado e rumava para as bananeiras, onde se metia embaixo de uma folha de costela-de-adão, sob a taioba ― três camadas de disfarce!
Na tarde de quinta-feira, se pôs a miar na porta de vidro da sala, pedindo para sair, coisa que não acontecia há tempos. Andou com dificuldade, fazendo mais paradas do que o normal, como se se despedisse. Na sexta, te levei no colo para baixo da taioba, aquela sob a bananeira, para ser nossa despedida, foto que abre este post ― não consegui entrar embaixo da costela-de-adão, desculpa.
Você não seria uma velhinha de pijama, né?
Te ajeitei no quarto, para monitorar de perto, mas percebi a inquietação. Imaginei que preferia passar a madrugada no montinho felino, ainda que desfalcado, e te devolvi entre Jujuba e Keka. Acordei às 3h, com Jujuba vomitando no corredor, e você já tinha ido ― só esperou terminar o aniversário da dona Vera. Sozinha, do mesmo jeito que nasceu, porque eu não sabia que um parto animal podia dar errado.
Me doeu te recolher ainda molinha do chão gelado. E, pela primeira das oito mortes, chorei de culpa ― 36 minutos, até pegar no sono com seu corpo ao pé da cama. Sonhei, então, que você levantava e vinha se aconchegar no meu colo. Eu dizia que isso não podia acontecer porque estava morta, mas te enchia de carinho. Só um instantinho, que fez muita diferença.
Obrigada por cuidar de mim, mesmo quando essa era minha função. ❤
*
Preciso agradecer ainda o Dr. Nivaldo, que em 2008 aceitou hospedar a pastora belga grávida recém-resgatada por uma desconhecida, com toda a cara de golpe, acabou virando amigo e mesmo aposentado em Brotas me aconselhou sobre as possibilidades de tratamento para a Pips no final. O Adriano, terapeuta que também tenho o privilégio de chamar de amigo (foda-se Freud), por me ouvir falar do mesmo assunto há 52 sessões. E a Liliane, apoiadora querida que ainda me paga para escrever por fora, que nunca cobrou aqueles textos não entregues.
Vocês não fazem ideia do inception de plot twists que ocorreram nos últimos meses para que a gente chegasse ao dia de hoje nesta configuração de Gatoca. Caçando qualquer coisa que se move no jardim, Pimenta sofreu uma provável reação alérgica a picada e acabou antecipando nosso luto porque os rins, já gastos pelos 17 anos de jornada, arriaram de vez.
Eu deveria ter suspendido a alimentação forçada na primeira semana de tratamento fracassado ― o cheiro na boca era de morte, o olhar opaco, as vértebras à mostra, a apatia frustrante. Mas existe uma pequenina parte no meu cérebro capricorniano, em formato de gato, que desobedece a razão. E, duas semanas depois, encontrei o lagartinho com que só a frajola brinca tomando sol no gatil.
Ao final da terceira semana, como se restasse alguma dúvida, ela saltou do meu colo em disparada para perseguir um lagartinho de verdade no corredor. Ainda não come sozinha, os rins seguem cronicamente doentes, ninguém espera um desfecho Benjamin Button. Mas, neste 22 de maio, comemoramos sua segunda chance.
Após ganhar o apelido de Cocreta pelo vício em procurar croquetes no parquinho vertical, Keka decidiu testar 50 tons de vômito e alcançou o menor peso possível para um bichano funcional. Quanto mais opções de sachê eu tentava, mais sangue a gastrite botava para fora de madrugada. Até que o estômago de 17 anos resolveu rejeitar o último sabor restante, de peixe branco, da única marca que a magrela ainda comia sozinha, batido no blender.
Apelei às seringadas, submetida ao sono picado, à tendinite e à musculação involuntária de tanto abaixar e levantar ― quando Pimenta caiu também, confesso, surtei. Mas no domingo a frajola lambeu o bico da seringa com mais urgência do que o patê dava conta de sair e depois a colher e os sabores de frango, atum, peru. Neste 22 de maio, comemoramos sua terceira (ou quarta) chance ― era para ela ter morrido antes da Chocolate!
Em terra de renais, quem tem uma gata com mais de 3 kg é rainha. E Jujuba se tornou aquela filha que tira boas notas na escola, arruma a cama sem ninguém pedir, não dá dor de cabeça ― apesar de que a cabeça de 17 anos da malhada não anda tão boa assim. Do nada, ela se desorienta na própria casa, emendando miados urgentes de angústia.
Mas ainda reconhece meu chamado, se acalma com o carinho e morde a mão que insiste em usar o mouse em vez de contribuir para o ronronar ― sim, a gata que me rendeu uma escarificação na mudança para o apertamento em São Bernardo! Neste 22 de maio, comemoramos como se fosse a primeira vez. E talvez seja a última também ― da família Guda já partiram a mãe, Pipoca e Pufosa.
Para não acharem, então, que se trata sempre do mesmo gato nos posts, fica a dica: Keka tem cavanhaque, Pips bigode, Intrú máscara e Jujuba é diferente. rs
Este texto em especial traz o colorido da Lucia Trindade e da Aline Silva, estreando no Gramado da Fama. Lucia acompanha o Gatoca há uma década, mora no Rio de Janeiro, trabalha com museus (sonho!) e batizou um dos peludos de Balão. A paulistana Aline faz pesquisas na área de química, tem quatro idosos e tirou Gordinha da crise com as dicas que aprendeu aqui sobre soro subcutâneo e alimentação úmida. Bem-vindas oficialmente, meninas!
Um aperto a distância também para Adrina Barth, Alice Gap, Itacira Ociama, Regina Haagen, Renata Godoy, Leonardo Eichinger, Irene Icimoto, Tati Pagamisse, Roberta Herrera, Vanessa Araújo, Dani Cavalcanti, Samanta Ebling, Bárbara Santos, Marina Kater, Sonia Oliveira, Marcelo Verdegay, Patrícia Urbano, Fernanda Leite Barreto...
... Bárbara Toledo, Solimar Grande, Aline Silpe, Lucia Mesquita, Michele Strohschein, Marilene Eichinger, Guiga Müller, Sérgio Amorim, Gatinhos da Família F., Luca Rischbieter, Rosana Rios, Regina Hein, Paula Melo, Paulo André Munhoz, Marianna Ulbrik, Cristina Rebouças, Lorena da Fonseca, Karine Eslabão, Michely Nishimura...
...Danilo, Klay Kopavnick, Glaucia Almeida, Ana Cris Rosa, Ana Hilda Costa, Lia Paim, Elisângela Dias, Ivoneide Rodrigues, Melissa Menegolo, Vanessa Almeida, Vivian Vano, Maria Beatriz Ribeiro, Elaigne Rodrigues, Simone Castro, Beatriz Terenzi, Viviane Silva, Regina Hansen, Arina Alba, July Grafe, Sandra Malacrida, Vera e Gabriela Fromme, que não deixam o projeto morrer! 🤗
(Tem um troco sobrando, gosta do nosso trabalho e quer se tornar apoiador também? Dá uma fuçada nas recompensas da campanha — aqui fiz um resumo das principais ações, on e offline, destes 16 anos e meio. ❤)
Eu perdi a conta de quantas vezes ouvi minha mãe perguntar retoricamente o que seria de nós, três filhos de personalidade forte, se ela morresse. Isso aconteceu muito antes do que qualquer um poderia imaginar, com 12 anos só a mais do que os meus 44, e a verdade é que a vida segue ― a gente chora e aprende a lavar privada, chora e pede ajuda com o arroz, chora enquanto pega três horas de trânsito até o trabalho para dar conta de tudo.
Mas não tem mais o carinho nos cabelos, o porto-seguro, a bacia na cabeça enquanto cantava algum jingle grudento da TV. Acho que é assim que as Gudinhas se sentem sem você, Guda. Eu continuei alimentando, limpando (com a escova, sorry), fazendo cafuné, escrevendo e-mails mais longos ao veterinário do que às pessoas que amo. Pipoca e Pufosa completaram 16 anos, Keka deve chegar aos 17 de teimosa, Pimenta e Jujuba talvez batam o recorde dos 18.
Mas faltam suas lambidas juntando todo mundo nos almofadões.
Aqui, na verdade, ela estava sendo cuidada, 9 dias antes de morrer
Em um misticismo exclusivo, os anos terminados em três marcam transformações profundas em mim. Foi em 2003 que precisei me dividir entre o trabalho e o hospital até dona Vera perder uma longa batalha contra o câncer, perto do Natal ― e que também tive de aprender a fazer arroz, lavar privada, cuidar dos irmãos mais novos, multiplicar dinheiro no supermercado.
Em 2013, deixei o casarão de uma vida inteira para caber com dez gatos, o Leo e, esporadicamente, as enteadas em um apertamento de 60 m2. Meu apertamento ― depois de uma reforma "faça você mesmo", apelidada de terapia. Uns meses antes, por causa das crises recorrentes de alergia e asma, já havia decidido parar com os resgates e redirecionar os esforços do Gatoca para a educação.
Se minha mãe estivesse viva, provavelmente confirmaria que em 1983 juntou coragem para se separar do alcoolismo do meu pai e nos mudamos para o prédio em que minha avó morreu antes de cumprir a promessa de sorvete toda a tarde, quando o shopping em frente ficasse pronto ― para voltar atrás pouco tempo depois. A mãe, não a avó.
E deve ter sido em 1993 que sofri um bullying persistente por nunca ter beijado na boca ― resolvi inventar um caso na viagem com as "amigas" à Caraguatatuba, que acabou desmascarado e só piorou tudo. Para dar uma ideia do impacto, o beijo de verdade tardou mais cinco anos ― e, por favor, não façam as contas.
Finalmente chegamos a 2023, assunto desta retrospectiva, com três gatas mortas em 15 semanas, a expectativa de um sabático ao final destas quase duas décadas felinas e um intruso estragando tudo. Guda partiu em março, com 17 anos, Pipoca em julho e Pufosa dois dias depois, ambas com 16.
A dinâmica da casa, acostumada a nove bichos preenchendo vazios e silêncios, mudou completamente ― ainda não acostumei a me referir à gangue no feminino. Sem a mãe e metade das irmãs, Jujuba virou uma gata carente e Keka deu para me acordar aos berros cada vez mais cedo ― 4h44 o recorde! Quem não mudou foi o Leo (amo essa foto!), parceiro de soro, de obra, de cova.
Comentei aqui no blog que envelhecer com os bigodes tem me feito enxergar o tempo de outra forma ― as adaptações demoram mais, o corpo não funciona do mesmo jeito, a gente precisa fazer um esforço ativo para não deixar a curiosidade morrer junto com o resto.
O blog perdeu o puxadinho no servidor de mais de uma década, passando justo o 1º de abril fora do ar. E ainda assistimos portão e telhado araçoiabanos voarem com o temporal de novembro ― que também nos deixou sem luz e água por três dias. Nos intervalos, porém, a gente comemorou.
Se me perguntassem qual das meninas sentiria mais a morte da mãe e das irmãs, eu chutaria a Jujuba por último. Ela só recorria ao grupinho quando a temperatura baixava dos 10ºC e sua sociabilidade me proporcionou a maior cicatriz destes quase 18 anos entre bichos. Acontece que, desde a mudança para o apertamento, a pequena foi desabrochado e fez questão de cuidar das três gatas no final.
Mesmo com Keka e Pimenta ainda por aqui, toda a madrugada agora ela se põe a miar, em um misto de lamento e urgência. E vem pedir carinho animada assim que levanto — sim, a ex-praticante da modalidade playcenter, que passava correndo pela mão, alternando entre medo e prazer, e voltava para o fim da fila.
Até durante as refeições Jujuba tem marcado presença — à distância exata de um cafuné, sem o risco de ser atingida por um colo. rs
Eu não poderia escolher outra modelo (e o sorriso?) para acompanhar a querida Sandra Malacrida, gateira da velha guarda experiente, no Gramado da Fama deste mês!
O apoio de vocês faz toda a diferença para o Gatoca, que não aceita publicidade para manter a independência. Quer se juntar aos despioradores de mundo (e participar do grupo de WhatsApp mais acolhedor e divertido da internet)? Acesse o Catarse — nossa jornada é longa e só pretendo parar na ONU. :)
Eu moro numa rua em que praticamente não passa gente, sem vizinhos a olho nu, cujo comércio mais próximo fica a 7 minutos de carro. E descobri que a casa podia se tornar ainda mais quieta com a morte tripla da família Guda, em menos de quatro meses.
A dinâmica mudou completamente: 16 anos de miados e cores, que enchiam os almofadões e se espalhavam pelos cômodos, resumidos a três gatas PB e uma agregada — pensem que Gatoca já teve simultaneamente, além da gangue de dez, nove temporários, mais dois cachorros!
Em todo o canto falta e a cada luto se somam os anteriores.
Eu guardo uma coleção de fotos suas esmagando o Simba, a Clara, o Mercv e a Guda em espaços onde, teoricamente, caberia apenas um gato. Você só tinha tamanho, Pufosa — e patas de leoa! Suspeitava que perder a mãe, último porto seguro, seria um grande baque. Mas não te imaginava partir menos de quatro meses depois e apenas dois dias na sequência da Pipoca.
Há 16 anos, vocês também chegaram mudando tudo. E de tutora de bigodes em quantidade normal (quatro, meu número da sorte) virei protetora de dez, ainda imaginando que conseguiria doar, se não a golpista da barriga, ao menos a ninhada. Como cansei de desabafar aqui, porém, quem separa uma família que segue mamando com 2 anos? Você, inclusive, foi a mais persistente.
E, por mais que tenha me esforçado para compensar as ausências, não podia lamber sua cabeça — sou alérgica a gatos, né? Embora neste final, hei de confessar, afundei a cara no seu pelo fininho e macio (surpreendentemente cheiroso!) mais de uma vez, enquanto chorava. Por causa dele, aliás, você é Pufosa — inicialmente Bufosa, até a gente descobrir que se tratava de "arma de fogo, pistola, berrante". rs
Não que você não berrasse, mas só na hora das guloseimas. Bastava ouvir o barulho da latinha abrindo de manhã ou do sachê rasgando nos fins de semana, que aparatava na cozinha, atropelando os irmãos. E continuou vindo mesmo doente, sem conseguir comer quase nada. E, quando andar ficou mais difícil, me encarava com os farolões azuis, de qualquer lugar da casa, esperando ansiosa pelo potinho.
Só você ganhou sachê batido em todas as seringadas dos últimos dias, com sabores variando. Nem parecia a criatura de gosto duvidoso que adorava recomer vômito (o próprio e os alheios), em um processo apelidado de micro-ondas, pelo aquecimento natural — se eu soubesse que, exclusivamente na ração úmida, você não vomitaria mais, teria nos poupado todo o estresse com o megaesôfago, o chiclete de dente, a gastrite. Me desculpa?
Talvez, você também aproveitasse outras coisas do gatil, além da grama que crescia no meio da cinerária, perigosamente mais saborosa. Engraçado que só você não quis se isolar no jardim nessa fase. Preferiu, sim, ficar sem as irmãs no escritório, mas acho que era porque o colchão, herdado com o sofá (que você amou) do cantinho novo, acomodava melhor sua artrose.
Ontem, a gente leu juntas e trocou carinhos, cada uma no seu estilo. Na hora de dormir, vesti a fraldinha, porque o banheiro havia ficado longe demais, mesmo sem sair do lugar. Ainda acordei às 4h14 para um chamego extra — fraldinha seca, patê para o estômago não doer, mais carinho. Você ronronou e gastou o miado economizado há dois dias, agora sei que em despedida.
Leo te pegou mais uma vez, três horas depois, em um sono tranquilo, enroladinha. Acordada por um pesadelo com o Simba e os gritos da Keka na porta do quarto, só cheguei a tempo de te botar no colo e repetir, grogue de sono, que estava ali. Bon vivant, claro que você morreria no domingo. O primeiro em que não pediu sachê.
Mas na segunda-feira o rangido voltou no ronrom, na terça seu corpinho já balançava com o esforço da respiração, na quarta você trocou o colo pelo jardim do gatil (que amava) e ontem começou andando devagar pelo catnip e terminou prostrada nos almofadões da sala. Foi muito rápido, Pipoca!
Eu coloquei a fraldinha, para garantir, fiz um último vídeo das Gudinhas juntas e pedi que me chamasse se precisasse de qualquer coisa, porque Chicão me acordaria — no quarto estranho pela alergia a gatos, você provavelmente se angustiaria, como aconteceu com a Guda.
Despertei pela primeira vez às 3h20, como nas outras madrugadas, só que apaguei de novo de exaustão. Às 4h10, te recolhi do chão, com a fraldinha arremessada longe — briosa como os Levischi, você ainda conseguiu usar o banheiro. Esquentei o patê e dei na seringa para a Pufosinha, depois para você, interrompida por duas respirações fortes, aquelas tristes conhecidas.
Não deu tempo de nada. Nem uma gota de xixi fora nem vômito ou diarreia, mucosas coradas porque eu monitorava com mais frequência do que corretor da Bolsa de Valores. Ao mínimo tom de azul, cederia à eutanásia — o veterinário local estava avisado. Tenho asma, levei minha mãe ao hospital pela última vez justamente com os pulmões afogados e não assistiria você morrer sufocando.
Quatro dos dias mais longos de que me lembro.
Dá para acreditar que você passou cinco anos fugindo de mim? Quer dizer, bem no começo, quando ainda era nosso ursinho Pimpão (sim, eu passei essa vergonha na castração), você até gostava das pernas magrelas, equivalentes a sentar no taco. Mas a família Guda, nascida em casa, acabou se fechando para humanos e só ganhei uma segunda chance quando suas patinhas não conseguiram mais fugir.
Naquele 2012 do primeiro susto, Leo me deu de presente um Daruma e, pintando o olho esquerdo, pedi que você sobrevivesse — os tropeços da jornada, inclusive, foram compartilhados, rs. Um privilégio poder completar a pintura nesta manhã — escolhi sua cor, porque já havia preto demais.
P.S.: Volto a este post um pouco menos esgotada do que ontem, digitando no celular com uma mão enquanto faço cafuné na Pufosa com a outra, porque faltou agradecer os momentos incríveis que tivemos juntas. Como você miava pedindo carinho e saía correndinho até sentir que era seguro relaxar e curtir. Sempre me acompanhava durante o almoço, em cima ou embaixo da cadeira, do seu jeito, no seu tempo.
E orava nos potes de água, escolhendo o vaso do finado bebedouro elétrico como seu favorito. Amava libélulas, principalmente pelo barulho, e caçou até um passarinho — o que me despertou emoções conflitantes, confesso. O coração partido da sua pelagem desbotou na velhice, mas, ironicamente, nunca esteve tão vibrante.