Você foi o golpe da barriga mais bem-sucedido do universo felino. Quando dona Jane, a vizinha que passou anos odiando nossa infância (e seus barulhos), tocou a campainha de casa, em maio de 2007, eu não sabia disso. Achei, na verdade, que viria reclamação. Eis que você apareceu
ostentando a pança que viraria apelido e daria forma ao
Gatoca — porque contar a história de quatro gatos não tem o mesmo apelo de uma dezena, né?
Preciso confessar, aliás, que pretendia doar todo mundo — quem consegue cuidar de dez bichos? Depois, só a ninhada. E aqui entra a engenhosidade do golpe: você fez as meninas
mamarem até os 2 anos! Aos 6 meses, vamos combinar, a situação já era ridícula. Pimenta nem coube!
E toda noite, pontualmente às 21h, você roubava um ímã do meu mural de fotos, fazia um miado engraçado e as cinco vinham jogar hockey.
Contei essa história na
Folha de S.Paulo, lembra? Uma sexta-feira em que o blog superou os acessos acumulados desde a criação, seis meses antes.
Só um monstro separaria essa família — que seu coração, tão grande quanto os bigodes, compartilhou gentilmente conosco.
Como minha mãe morreu muito cedo e a gente não se toca da importância do que está vivendo enquanto se está vivendo, foi você quem se tornou meu exemplo de maternidade. Mesmo quando as Gudinhas já não queriam mais ficar tão grudinhas, você apoiou — do seu jeito, no tempo delas.
E me fazia pensar quem zelaria por ti no final —
Simba teve Clara,
Clara teve Mercv,
Mercv teve você. A resposta refletia no espelho. Mas ainda não estou pronta para terminar esta despedida.
Quero falar antes de como você recebia todas as visitas com esfregadas, personalidade oposta à das filhotas ariscas, e tentou sem sucesso ser amiga da Chocolate — que inventou o conceito de
arqui-inimigo platônico. Da sua
obsessão por pão francês. Dos
carinhos de pé que amava ganhar feito pano de chão — só que impecavelmente branco, macio e cheiroso (até o fim, exceto pelo bafo,
sorry).
Das bolinhas petelecadas, quando ninguém mais topava brincar junto (
1 e
2) — sempre me chama a atenção constatar o lado não-mãe das mães. E da generosidade de deixar o luto de maio do ano passado
exclusivo para o Mercv.
Nesses dez meses, a doença renal avançou, a cistite rendeu dois episódios, o nariz nunca mais desencatarrou. E ao quadro delicado ainda se juntaram
sintomas neurológicos — tipo fingir coma enquanto dorme. Fica difícil identificar o que te fez parar de comer de vez.
Mas cada rodada de patê na seringa era compensada, para nós duas, com passeios úmidos pelo jardim, roladinhas sem pressa no gramado, cafuné com ronrom. Até comecei a ler
O Homem Que Morreu Duas Vezes, mas você se enfiava na lama embaixo do contêiner e só deu para embalar mesmo quando terminamos na cama.
Não era para ser assim. No meu roteiro, a gente teria espreguiçadeiras. E você, baiana de tudo, seguiria apagando como uma velinha — já contava com essa possibilidade desde janeiro. Quem sabe morreria sonhando, por que não? Na última semana, porém, rolou um
plot twist e os três últimos dias dispensam bilheteria.
Simba partiu quando não conseguiu mais chegar ao banheiro para fazer xixi, Clara quando não conseguiu mais comer o patê de colher, Mercv quando não conseguiu mais curtir o meu colo. Você já tinha perdido tudo, parecia que entregaria os pontos e, do nada, tirava forças para mais um miado, uma caminhada bamba, um solzinho no gatil.
Senti que não queria ir. Era por causa das meninas, Guda? Na primeira noite em que te levei prostrada para o quarto (sim, diferente dos outros gatos, você dormiu mais de uma noite no quarto, fato inédito por causa da alergia... a gatos), você se materializou em frente à porta, deixando claro que não ficaria.
Na terça-feira, seu
balde de faxina favorito para beber água velha amanheceu quebrado e ninguém sabe dizer como. Depois, a assadeira refratária de vidro explodiu no forno com o nosso almoço — Nadir Figueiredo
destacando em vinho a tecnologia contrária ao feito. E eu completei quatro quilos perdidos — nada, em comparação aos seus 1,65 kg finais.
Ontem, perguntei para o Leo se a Clara ainda estava nos almofadões. Provavelmente exausta pelas madrugadas em claro, mas quero acreditar que era ela te acompanhando na partida. E você foi. Às 4h55 de hoje, depois de cair (será?) da escultura moderna de travesseirinhos com que tentei melhorar sua respiração, de rosto colado ao meu.
A lembrança mais agridoce que se pode ter de um despertar.
Fica tranquila que cuidarei das tranqueiras — aprendi com a melhor. Em dois meses, elas farão 16 anos! E você fará uma falta danada.