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24.8.12

Ponto de vista

Há três anos eu tento resgatar o Bigodinho ― desde que ele vinha trazer cigarros para o Jacob aqui na prisão. Mas o frajola conseguia ser mais assustado do que a Pipoca e não deixava a gente andar nem na mesma calçada. No começo de julho, eu o vi em cima do muro, ofereci a ração de sempre e, diferente das dezenas de vezes anteriores, ele aceitou. Comeu pertinho de mim e ainda permitiu um cafuné na cabeça.

Suas patas estavam machucadas e a cara colecionava unhas espetadas. São Francisco devia tê-lo amaciado para ganhar uma segunda chance. Mas a superpopulação de Gatoca e o receio de pegar o gato briguento à força me fizeram esperar mais um tempo para conquistar sua confiança. Eis que na madrugada do dia 18 eu trombei com a criatura no meio da sala, entre o pote de água mijado e um tufo de pelos pretos.

Prendi todo mundo no jardim, devolvi a Pipoca para o meu quarto para poder liberar o banheiro do Kiwi, abri uma lata de patê e chamei os irmãos para ajudarem na caçada. Se o peludo havia entrado em casa, devia querer uma família. Isso era o que eu pensava antes de ouvi-lo rosnar como nenhum cachorro resgatado nestes cinco anos ousou rosnar para mim.

E, três horas de tentativas frustradas de aproximação depois, nós acabamos decidindo soltá-lo. O bichinho saiu correndo sem olhar para trás, como um fugitivo de Alcatraz (apesar de nosso bairro só ter mar no nome). Vai morrer acreditando ser mais feliz do que o amigo tigrado, que não bate os dentes de madrugada, não precisa lutar contra os roncos do estômago, não dorme em buracos com medo de um ataque selvagem ― ou animal mesmo.

Quem é livre nessa história?

Ilustração de Leonardo Eichinger, ladrão de corações de pudim

9 comentários:

Rose disse...

Há animais cuja experiência com humanos é mais traumatizante do que todo o frio, toda a fome e todo o medo. Dê mais tempo a ele, ou pelo menos deixe água, comida e um cantinho para ele poder chegar e descansar um pouco. Talvez seja tudo do que precisa, por enquanto. Sei que é frustrante. Foi muito frustrante todo meu empenho para conseguir conquistar o Malhado nas ruas e ele fugir sempre. Hoje o pequeno vive colado nos meus calcanhares.

Anônimo disse...

Pelo que eu entendi vc tentou aproximar o Kiwi dele? como o Kiwi reagiu? ele tá mais saidinho agora? rsrsrsrrsrsr bju!

Anna K. (antes mãe da Amy, rsrsrsr agora mãe do David B.)

Amanda Herrera Massucatto disse...

Ele está me parecendo tão escaldado e arredio quanto umas pessoas que eu conheço aí... Faz uma ilustra pra ele, quem sabe ele não se rende!

Trocadalhos a parte, alguma coisa ele foi fazer na sua casa, e algo me diz que disputar liderança é que não foi. Ele deve sentir que aí é seguro, e na hora do vamos ver o escaldo deve falar mais forte. Também sou da opinião de que é uma questão de tempo..e se eu conheço alguém persistente...

Eliane disse...

“Trazer cigarros para o Jacob”... Engraçado!

Muitas vezes me pego pensando se não sou egoísta por manter minhas gatas saudáveis, bem alimentadas, dar-lhes carinho... mas privando elas da liberdade? Aprisioná-las, castrá-las... Essas coisas não são uma maravilha, são? Mas acho que são atitudes necessárias levando em conta o mundo como o mundo é. Por outro lado, o Bigodinho tem o direito de fazer valer o ponto de vista dele. Concordo que deixar-lhe um pouco de comida já é de grande ajuda no momento.

Isis Mastromano disse...

Já passei pelo mesmo, com a Janet, uma cachorrinha que também preferiu a questionada liberdade. Concordo com o pessoal, pode ser que o frio e a fome sejam o de menos diante das experiências que ele teve com humanos. Mas, creio que a gente tenha a tendência de romantizar nossa relação com os bichos e eles continuam bichos, podem ter mesmo reações que nos frustem, embora não haja nada de errado nisso e até mesmo nenhum fator de negatividade por trás.

Mariana Sassi disse...

Bia, essa dúvida é sempre cruel. Também já passei por isso...quando adotei Leônidas (lembra, falei disso aqui?) fiquei me torturando com essa coisa de trancar um gato, antes de rua, num apartamento...e minha maior dúvida era se ele seria um "gato feliz"! Para minha sorte, ele se adaptou bem, é brincalhão e super amoroso! O problema é q nem todos se adaptam né...mas vc já faz a sua parte, fique tranquila, e o Bigodinho "reconhece" isso, tanto que visita sua casa de vez em quando :) Beijos!

Beatriz Levischi disse...

Água e comida todos os bichos do bairro têm garantidos, Rose. O problema é que o Bigodinho custou a voltar.

Anna, eu transferi o Kiwi para o quarto em que a Pipoca estava, porque não dá para juntar um animal recém-resgatado com os outros.

No caos das grandes cidades, um gato raramente passa dos 3 anos de idade, Eliane.

Isis, a gente romantiza nossa relação com os peludos, sim. Mas não podemos esquecer que eles foram domesticados, né?

Mariana, só os bigodes ferais rejeitam a vida caseira.

Guiga disse...

É triste mesmo, Bia. :(
Teve um que só consegui chegar perto dele quando caiu, sem forças, no meu jardim. Levei pro vet mas em poucos dias ele se foi. Sei lá se isso é destino... só sei q é injusto.
O que eu faço é dar uma chance pros que se deixam pegar, pros mansos, pros "sociáveis". No mais, tento me tranquilizar pensando no velho e bom "faço o que posso".
Fica tranquila, Bia!

Beatriz Levischi disse...

Senão, a gente enlouquece, né, Guiga?

O Bigodinho deve ter se atirado da parte do muro que não tem tela, porque é superalta. Depois da captura, ficou um tempão desaparecido, mas não resistiu aos meus encantos e acabou voltando. :)